Donde a
convicção do niilista que vive segundo essa experiência da temporalidade linear
de que a vida não é, na verdade, um viver, mas somente um vão e ilusório
passar; uma pura aparência de sonho cujo pano de fundo feito de nada a revela
como sendo sem sentido, como absurda em si mesma, sendo necessário projetar o
sentido e o valor num outro mundo, numa transcendência. Nietzsche pode afirmar,
pois, com toda lógica, que a concepção linear do tempo é a manifestação
principal do ressentimento e do espírito de vingança contra a vida, de modo que
só nos veríamos livres do niilismo se acessássemos um outro modo de entender e
viver a temporalidade que fosse, por sua vez, sua redenção. Nesse
contexto, o eterno retorno se propõe, então, a ser justamente esse outro modo
de viver o tempo, oferecendo-se como desafio à vontade cuja afirmação a faria
acessar uma outra forma muito diferente de viver a temporalidade. Ou, mais
concretamente, o eterno retorno se oferece como a decisão para um novo modo de
aplicar a si mesmo a exigência ética de articular o tempo de modo que
dessa exigência se siga o gozo e a afirmação da vida em vez de sua negação
extrema (p.9).
É isso que se
deduz claramente da alegoria narrada no canto intitulado "Da visão e
enigma", na terceira parte do Zaratustra (ZA/ZA, Da
visão e enigma, KSA 4. 197-202). Nessa passagem, a visão de Zaratustra fala
sobre um jovem pastor que, ao chão, se retorce de dor pois uma enorme serpente
negra havia se introduzido em sua garganta e o estava asfixiando lentamente. A
serpente negra simboliza aqui o niilismo. Zaratustra tenta, inultimente
arrancar a serpente da garganta do pastor puxando-a. Porque o niilismo, quase
já completamente introduzido no homem, incorporado a ele, não pode ser vencido
a não ser por aquele que dele padece. De modo que a serpente só poderia ser
morta se o pastor lhe mordesse a cabeça. E, com efeito, apenas quando o pastor
faz aquilo que Zaratustra lhe recomenda aos gritos, ou seja, a morde e a cospe,
é que ele se vê livre da serpente e com a vida salva. O relato dessa visão
encerra-se com uma indicação muito importante: quando o pastor se levanta após
ter mordido a cabeça da serpente, o texto diz: "Não mais pastor, não mais
homem - um transfigurado, um iluminado, que ria! Nunca ainda sobre a
terra riu um homem, como ele ria!" (ZA/ZA, Da visão e enigma §2, KSA 4. 202.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho). Era o Übermensch. Essa
alegoria ensina, pois, que a superação do niilismo depende de uma decisão
suprema da vontade pela qual liberamos nossa existência do niilismo e damos o
primeiro passo em direção a um über, a um para além do homem (Mensch)
como modo novo de ser e existir. E qual é essa decisão? Como veremos em
seguida, é a decisão de afirmar, de dizer sim ao eterno retorno do mesmo com
tudo aquilo que ele implica e significa (p.6).
Por exemplo, a
representação puramente imaginária do inferno, da condenação eterna ardendo em
inextinguívei chamas incandescentes e atormentados sem descanso por legiões de
demonios que pululam com seus tridentes e chifres, não precisou nunca de
fundamento científico que demonstrasse sua verdade e, no entanto, produziu sem
dúvida alguma um enorme efeito sobre a conduta dos indivíduos durante dois mil
anos. Para que penetrasse profundamente, precisou de muito tempo e da coação
tirânica de um poder autoritário tal como o da Igreja. Pois o mesmo - diz
Nietszche-, ou pelo menos algo parecido, teria que acontecer com o eterno
retorno: não é preciso que ele seja demonstrado como a verdadeira realidade do
tempo. Nem sequer precisa ser uma idéia verossímil ou provável, o que ela
precisa é ser uma idéia eficaz enquanto instrumento de transformação e
educação, uma idéia assumida pois simplesmente se quer afirmá-la como tal e
dizer sim a ela (p.7).
Fragmentos do texto "Nietszche ou a eternidade do
tempo" de Diego Sánches Meca, professor da Universidade de Madrid (UNED),
disponibilizado para os participantes da palestra ministrada na UNIFESP dia
17.09.2010. Tradução de Vinicius de Andrade.