quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Nietzsche ou a eternidade do tempo I

Donde a convicção do niilista que vive segundo essa experiência da temporalidade linear de que a vida não é, na verdade, um viver, mas somente um vão e ilusório passar; uma pura aparência de sonho cujo pano de fundo feito de nada a revela como sendo sem sentido, como absurda em si mesma, sendo necessário projetar o sentido e o valor num outro mundo, numa transcendência. Nietzsche pode afirmar, pois, com toda lógica, que a concepção linear do tempo é a manifestação principal do ressentimento e do espírito de vingança contra a vida, de modo que só nos veríamos livres do niilismo se acessássemos um outro modo de entender e viver  a temporalidade que fosse, por sua vez, sua redenção. Nesse contexto, o eterno retorno se propõe, então, a ser justamente esse outro modo de viver o tempo, oferecendo-se como desafio à vontade cuja afirmação a faria acessar uma outra forma muito diferente de viver a temporalidade. Ou, mais concretamente, o eterno retorno se oferece como a decisão para um novo modo de aplicar a si  mesmo a exigência ética de articular o tempo de modo que dessa exigência se siga o gozo e a afirmação da vida em vez de sua negação extrema (p.9).
É isso que se deduz claramente da alegoria narrada no canto intitulado "Da visão e enigma", na terceira parte do Zaratustra (ZA/ZA, Da visão e enigma, KSA 4. 197-202). Nessa passagem, a visão de Zaratustra fala sobre um jovem pastor que, ao chão, se retorce de dor pois uma enorme serpente negra havia se introduzido em sua garganta e o estava asfixiando lentamente. A serpente negra simboliza aqui o niilismo. Zaratustra tenta, inultimente arrancar a serpente da garganta do pastor puxando-a. Porque o niilismo, quase já completamente introduzido no homem, incorporado a ele, não pode ser vencido a não ser por aquele que dele padece. De modo que a serpente só poderia ser morta se o pastor lhe mordesse a cabeça. E, com efeito, apenas quando o pastor faz aquilo que Zaratustra lhe recomenda aos gritos, ou seja, a morde e a cospe, é que ele se vê livre da serpente e com a vida salva. O relato dessa visão encerra-se com uma indicação muito importante: quando o pastor se levanta após ter mordido a cabeça da serpente, o texto diz: "Não mais pastor, não mais homem -  um transfigurado, um iluminado, que ria! Nunca ainda sobre a terra riu um homem, como ele ria!" (ZA/ZA, Da visão e enigma §2, KSA 4. 202. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho). Era o Übermensch. Essa alegoria ensina, pois, que a superação do niilismo depende de uma decisão suprema da vontade pela qual liberamos nossa existência do niilismo e damos o primeiro passo em direção a um über, a um para além do homem (Mensch) como modo novo de ser e existir. E qual é essa decisão? Como veremos em seguida, é a decisão de afirmar, de dizer sim ao eterno retorno do mesmo com tudo aquilo que ele implica e significa (p.6).
Por exemplo, a representação puramente imaginária do inferno, da condenação eterna ardendo em inextinguívei chamas incandescentes e atormentados sem descanso por legiões de demonios que pululam com seus tridentes e chifres, não precisou nunca de fundamento científico que demonstrasse sua verdade e, no entanto, produziu sem dúvida alguma um enorme efeito sobre a conduta dos indivíduos durante dois mil anos. Para que penetrasse profundamente, precisou de muito tempo e da coação tirânica de um poder autoritário tal como o da Igreja. Pois o mesmo - diz Nietszche-, ou pelo menos algo parecido, teria que acontecer com o eterno retorno: não é preciso que ele seja demonstrado como a verdadeira realidade do tempo. Nem sequer precisa ser uma idéia verossímil ou provável, o que ela precisa é ser uma idéia eficaz enquanto instrumento de transformação e educação, uma idéia assumida pois simplesmente se quer afirmá-la como tal e dizer sim a ela (p.7).



Fragmentos do texto "Nietszche ou a eternidade do tempo" de Diego Sánches Meca, professor da Universidade de Madrid (UNED), disponibilizado para os participantes da palestra ministrada na UNIFESP dia 17.09.2010. Tradução de Vinicius de Andrade.


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